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29 de dezembro de 2011


A ficção imita a ficção

Por Alexandre Campinas em 03/04/2007 na edição 427 (Observatório da Imprensa)

"(...) A última frase do subchefe dava-lhe voltas na cabeça. O segredo da abelha não existe, mas nós conhecemo-lo, não existe, mas conhecemo-lo, conhecemo-lo, conhecemo-lo. Vira cair uma máscara e percebera que por trás dela estava outra exactamente igual, compreendia que as máscaras seguintes seriam fatalmente idênticas às que tivessem caído, é verdade que o segredo da abelha não existe, mas eles conhecem-no (...)" (A Caverna, José Saramago)

É possível interagir com o que já vem pronto, acabado, digerido ? A onda televisiva dos reality shows é a frutificação do processo alienante plantado no início da televisão. O telespectador senta-se em frente à TV para não existir durante o tempo que dura a atração. Durante aquele período ele aliena o seu direito – e dever – de pensar. Antagonizando, então, Descartes e seu cogito ergo sum, a "inteligentsia" finalmente conseguiu criar o "não penso, logo, inexisto".

A construção ficcional das novelas

A mass media empacotou a realidade e deu-lhe a forma de atração. O embotamento induzido pelo "excesso de nada" leva a um estado de disfunção narcotizante, constantemente alimentado pelo apelo ao individualismo contemporâneo que não consegue mais refletir, dentre outros aspectos, sobre a violência, as questões políticas e os problemas sociais. São momentos de vida não-comunicante, insocial, corroborados pelo hábito dos ipódis e emepês, pela falta absoluta da velha e boa conversa presencial e pelo ensimesmamento improdutivo. Ponto para quem apostou, na década de 40, no Deus-ferramenta (um deus de resultados) chamado televisão. Levou-se anos para criar o consumidor ideal e, agora, finalmente, voilà: ele não reclama, não sugere, não avalia, não critica e, ainda por cima, carrega a ilusão de interferir. É ou não é o Olimpo da alienação?

Como exemplo evidente, tomemos o mais famoso reality show: o Big Brother, impressionante atração em todos os países que o exibem. No Brasil, pelas mãos da experiente TV Globo, o formato da Endemol recebeu a herança da tarimbada construção ficcional utilizada nas telenovelas. Assim, percebe-se no BBB a existência de protagonistas, antagonistas e coadjuvantes, organizados em núcleos que interagem e se afunilam até o final. Eles desenvolvem uma narrativa que, a exemplo de qualquer outra, carrega seus conflitos, ápices e desenlaces. Personagens são coordenados por um narrador-onisciente que representa (indutivamente) o tal alienado do outro lado da tela. Sem deixar de mencionar a competentíssima sintaxe visual, representada pelos enquadramentos, marcações, cenografia etc.

Um demiurgo platônico

Afloram as características do livro 1984, de George Orwell, como, por exemplo, as impessoas (os eliminados), a novilíngua (linguagem simplificada e simplificadora que limita o pensamento crítico por inanição mental), o duplipensar e a eterna recriação da história de acordo com as circunstâncias propostas, entre outras similaridades (e, consequentemente, Vigiar e Punir de Foucault e O Panóptico de Bentham). No que diz respeito ao Big Brother (personagem) da literatura, este, por lógica, deveria ser interpretado pelo telespectador, o qual, entretanto, não exerce a função. Tem apenas a ilusão de exercê-la através da proposta interativa. Ora, a interação é fato impensável para o programa, exatamente por ser veiculado na televisão comercial, a quem não interessa que o telespectador "elimine", eventualmente, personagens importantes para a manutenção do interesse na trama. Caso a TV comercial agisse de outra forma, acolhendo a interatividade em detrimento da manutenção da audiência que estimula a negociação das cotas de patrocínio, ela seria a "TV burra" e, definitivamente, sabemos que não o é.

A TV segue construindo um produto desejado e, ao mesmo tempo, alimenta-se da demanda que o mesmo provoca; por outro lado, o telespectador também vive essa experiência baudrillardiana. Deseja viver (ou ter a impressão da vivência) aquilo que pensa que o reflete, deseja sentir-se partícipe. Vive imantado a uma ilusão extra-corpórea de existência projetada na tela da TV. Demiurgo platônico que mitifica não as individualidades, mas o projeto do conjunto delas, construído como uma fábula referencial que gera o efeito de real, com credibilidade e verossimilhança.

Daqui, de meu apartamento, eu não vejo as sombras na caverna, porém sinto o cheiro.

18 de junho de 2009

Jornalista não gosta de suíte
Foi-se o tempo em que podia-se contar nos dedos os jornais "hemato-premos"


Hoje, dia 18 de junho, a nota conjunta FAB/Marinha informa que novos destroços foram avistados e recolhidos. Apesar da ausência de novidades impactantes, destaque-se a megaoperação das duas armas brasileiras. Um show de competência sob todos os aspectos. Transparente e informativo na medida da imparcialidade, bom senso e respeito à memória das 228 vítimas do vôo da Air France. Oxalá o órgão francês de investigação e análise (BEA) tenha - no mínimo - o mesmo padrão ético e operacional. É o que todos esperam, apesar das primeiras declarações parciais - antes mesmo de quaisquer análises e investigações - de sua principal "otoridade" (?).

Voando baixo I

Você lembra do velho Fokker 27 ? Aquele que fazia vôos ligando capitais ao interior e também os vôos da categoria Vôo Direto ao Centro (VDC), uma espécie de ponte aérea entre os aeroportos centrais do Rio, São Paulo e BH ? Aquele com asas sobre a cabine ? Que chegava ao Santos Dumont com o trem de pouso "raspando" as águas da Baía de Guanabara ?

Fokker-27 da (assassinada) Rio-Sul

Pois este velhinho, simpático e histórico avião da Força Aérea Espanhola também (não esqueçamos do útil e eficiente pé-de-boi Hércules) atua nas buscas, na região coberta por Dacar. Sem críticas, apenas saudosismo: toda ajuda é válida e o velho F-27 deve ter lá seus méritos técnicos para este tipo de operação.

Voando baixo II

Nenhum corpo encontrado, nada de caixas-pretas e a grande imprensa (?) deixa a tragédia (afinal, onde o sangue ?) para voltar ao mais novo escândalo político, ao "racha" na F1 (eu, ainda, duvido: B.E. não está lá por ser burro...), ao mais recente imbroglio no Oriente, etc. Como se costuma dizer, vida que segue. Ou não.


Vítimas do vôo da Air France
(foto: ibahia.globo.com)


No caso em questão, agora completamente suitado, 228 vidas NÃO SEGUEM. Porque caíram, despencaram ao contrário das ações AF/KLM, que começam a diminuir velocidade da queda para que cheguem, novamente, senão à altitude de cruzeiro, pelo menos a uma altitude mais segura em caso de nova (toc toc toc) descompressão (chegaram ao numero expressivo de - 7.8% acumulados na semana, hoje estão em - 5.17%). Vidas perdidas ? Caminhos interrompidos ? Histórias abruptamente encerradas ? Parafraseando Gullar, não cabem no poema. O poema é liberal. O mercado regula...

Patricia Coakley, esposa de Arthur Coakley,
vítima do vôo da Air France

(foto: AP/Anna Gowthorpe)

10 de dezembro de 2008

Ladrão de mulher *

Festival internacional envolve BH na Semana do Palhaço


Entre os dias 5 e 13 de dezembro, Belo Horizonte vive o Palhaçadas em Geral - Encontro Internacional de Palhaços, uma grande confluência recheada de apresentações públicas (e gratuitas), oficinas e debates, criado em parceria pelo Circo Volante e pelo grupo Teatro Andante. Utilizando, sobretudo, espaços públicos para a realização dos eventos, como a Praça Sete (centro), a Praça Duque de Caxias (bairro Santa Tereza), o Cine Santa Tereza, o Ideal Café Teatro (ambos em Santa Tereza) e o Teatro Sesi/Holcin (bairro Santa Efigênia), o Palhaçadas em Geral aproveita o mês de dezembro para trazer palhaços de outros estados e países – Espanha e México – e comemora aqui o Dia do Palhaço, que ocorre em 10 de dezembro.

Pipoca e picadeiro...
(Foto AC)

Essência do palhaço.
(Foto AC)

Corredor de palhaços

De acordo com o organizador Marcelo Bones, sociólogo, professor, ator do Teatro Andante e também o Palhaço Grande Cello, o sonho do evento Palhaçadas em Geral surgiu a partir de um encontro nacional chamado Anjos do Picadeiro, criado há 10 anos, em São José do Rio Preto (SP), pelo grupo Teatro de Anônimo. A versão 2008 do Anjos do Picadeiro, por coincidência, foi realizada no Rio de Janeiro e terminou nesta semana. Assim, segundo Bones, criou-se um corredor de palhaços entre Rio, BH e Mariana, onde ocorrerá o encontro final envolvendo o Palhaçadas em Geral, o Anjos do Picadeiro e o grupo Circo Volante, de Mariana, nos dias 14, 15 e 16 de dezembro. “Vamos buscar o debate entre a arte do palhaço, a cultura e a sociedade”, afirma Marcelo Bones que além de tudo é criador do projeto Meu Palhaço, que busca depoimentos de palhaços contemporâneos de todos os tipos: palhaços de festa, televisivos, de circo e de rua. “Atualmente existe uma efervescência da arte do palhaço, o que é muito interessante sob o ponto de vista da função do palhaço, que vem na contra-mão desse mundo caótico e individualista", explica Bones que também costuma dizer que “o palhaço tem uma licença especial para falar daquilo que as pessoas não podem, as coisas que não são ditas”.

Marcelo Bones, organizador e também...
(Foto AC)

O palhaço Grande Cello
(Foto AC)

O festival é realizado quase sem dinheiro. A única disponibilidade surgiu por meio de um edital da Caixa Econômica Federal, no qual foi captado algum recurso financeiro. Fora isso, tudo é voluntário: organizadores, ajudantes, equipamentos emprestados, a prefeitura, que cedeu o Cine Santa Tereza e muito suor de uma gente que luta para agregar a tudo um sentimento de amor pela arte.

Invasão de palhaços no centro de BH
(Foto AC)

A emoção que não dá para explicar
(Foto AC)

Palhaços todos os dias

Quando surgiu o palhaço é assunto de muita controvérsia. Aceita-se a versão de que teria surgido há mais de 5.000 anos, na China, com a função de bobo da corte. “O palhaço ladrão de mulher é a encarnação da função libertária. Aquele que provoca reações que deixam marcas”, filosofa Bones. Ele garante que a comunicação direta com os nossos desejos humanos faz com que a presença marcante do palhaço seja sempre evocada. Quer seja no mundo contemporâneo, quer seja no mundo de nossas recordações.

O palhaço convoca...
(Foto AC)

O respeitável público responde...
(Foto AC)

E participa: catarse da interseção
(Foto AC)

Vamos tentar ? Arrelia, Carequinha, a turma do Bozo, o palhaço Popó (Tv Horizonte) e tantos outros. Além, é claro, do inesquecível Carlitos, de Charlie Chaplin, e dos nossos atores cômicos, como Renato Aragão, Mazzaropi e Oscarito. Quais sentimentos esses nomes lhe provocam ?


Para Igor de Souza Silva, de 10 anos, a Praça Duque de Caxias virou um mundo de sonhos. Igor já havia assistido espetáculos nos outros dias: “Parei a bicicleta, as brincadeiras, parei tudo, só para rir muito. Acho que deveria ter palhaços aqui toda semana, todo dia”, diverte-se o garoto, morador do Abrigo Belo Horizonte, encantado pelos palhaços.

Igor largou a bicicleta.
(Foto AC)

As crianças largaram tudo.
(Foto AC)

O mundo parou em Santa Tereza: palhaço todo dia.
(Foto AC)

Arte como libertação

Palhaços como o Pindaíba, que divertiu o público com grande irreverência e muita sensibilidade. Pindaíba, aliás, o antropólogo e ator Tiago Araújo, ativo na organização do Palhaçadas em Geral, afirma que o palhaço é um tipo de código para falar da diversidade dentro de uma atuação cômica.

Pindaíba: "Brincar na rua é legítimo, artístico e poético".
(Foto AC)

O sorriso de Pindaíba para o Brasil...
(Foto AC)

E a careta de desdém para quem gera nossas mazelas.
(Foto AC)

“O palhaço ficou durante muito tempo ligado ao circo, porém atores e diretores reencontram hoje, nessa figura teatral, a característica do improviso sobre um repertório, de forma mambembe”, define Tiago. E vai além, “se você quiser – com aquilo que você tem e do jeito como você é – sair para brincar na rua, é legitimo, é artístico e é poético. E você tem direito. É isso que a gente deve estimular: a arte como libertação, na qual você tem a oportunidade de se entregar”, convoca o palhaço Pindaíba, de forma humanística e envolvente que só não é mais completamente feliz, segundo ele, pelas coisas negativas que atrapalham o Brasil, como a situação social e a internacionalização dos nossos minérios.


Mais imagens do Palhaçadas em Geral

Encontro Internacional de Palhaços


Bastidores: Popó
(Foto AC)

Em cena: Cia. El Indivíduo
(Foto AC)


Florisa e Zuleiko nos bastidores do palco
da Praça Duque de Caxias (Santa Tereza)

(Foto AC)

Benedita e Sabonete fazendo graça
(Foto AC)

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(* Matéria originalmente produzida para o Jornal Edição do Brasil)


28 de outubro de 2008

Conectando o mundo

Bienal 2008 traz artistas mineiros para o olho do furacão

A 28ª edição da Bienal de São Paulo – Em Vivo Contato – foi oficialmente aberta ao público no dia 26 de outubro e irá até o dia 6 de dezembro. Para a versão 2008 foram convidados 40 artistas que representam 20 nacionalidades diferentes em um espetáculo globalizado, pronto para ser um grande forum questionador da arte contemporênea. Destaque para os artistas mineiros – Mabe Bethônico, Rivane Neuenschwander, Valeska Soares e o grupo O Grivo (Marcos Moreira Marcos e Nelson Soares) – que ocuparão com suas artes e provocações parte do espaço físico e subjetivo dos três andares do Pavilhão Cicillo Matarazzo Sobrinho (o “Pavilhão da Bienal”) no Parque do Ibirapuera em São Paulo.


A grande novidade desta edição ficou por conta da divisão conceitual dos espaços em quatro situações interligadas. Há uma proposição de integração de espaços com o entorno do pavilhão. Para isso, obstáculos físicos foram removidos no primeiro andar, promovendo maior integração com o Parque do Ibirapuera, como uma imensa ágora disposta permanentemente ao debate. É A Praça. No terceiro andar do prédio funcionará A Biblioteca, um espaço permanente de questionamento: lugar de gerar idéias, “palestrar” e “conferenciar”, que, por sua vez, abre-se irrestritamente ao virtual pelo espaço O Website que, se ao longo da Bienal servirá como orientador e fonte de pesquisa, após o término servirá como uma extensão do evento, contando com as publicações geradas a partir das atividades nos espaços.


Faltou um ? É O Vazio. A localização geográfica já parece um tanto mítica. Uma espécie de recheio especial de sanduíche ultra-saboroso que tomará lugar no segundo andar, entre A Praça e A Biblioteca. Além da geografia, O Vazio será o espaço da potencialidade, um lugar simbólico onde tudo pode ser gerado, ou, de acordo com a justificativa original do site, servirá “para instaurar um momento de reflexão, o espaço vazio remete primeiro à avaliação de um processo, de verificação de seu estado e qualidade, assim como à intensa atividade artística que toma a cidade por ocasião das Bienal”.

Manifestação do stick
(Foto: blog Bien-mal2008)

Intervenção “não-oficial” na abertura: provocação aceita.
(Foto: Folha de São Paulo)

Uma provocação intelectual que já rendeu história. Antes mesmo da abertura, no dia 23 de outubro, O Vazio foi alvo de uma intervenção do grupoArac, que define-se como coladores de stickers. No domingo, abertura oficial para o público, um grupo de 40 pichadores invadiu o segundo andar com latas de tinta e muita disposição para discutir os limites da arte. Esse é o caldeirão efervescente do qual os mineiros participarão.


Mineiros potencializando o vazio

Acostumados a desenhar a música em conjunto com as imagens dos filmes para os quais fazem trilha, O Grivo chega a Bienal com a função de administrar um lote. Um lote-padrão, como é comum em Belo Horizonte, de 360m2. Serão caixas de som e máquinas musicais numa miscelânea que envolve oito grandes auto-falantes nos limites do “lote”, adicionados de mais 25, organizados pelo espaço. Além disso, 50 máquinas de som em forma de caixas completarão a instalação. Marcos e Soares explicam que em cada caixa uma haste tange superfícies de materiais diversos, como o amianto, plástico, aço e outros materiais.


De acordo com entrevista concedida à Folha de São Paulo, Marcos afirma que todo o aparato funciona como uma palheta delicada, que soará mais como timbres diversos do que com a afinação clara das notas musicais. Os visitantes poderão aproximar-se ou afastar-se de tal ou qual caixa, criando assim novas dimensões do som, uma nova maneira de ouvir, criando imagens próprias em conseqüência da funcionalidade sonora.

Marcos e Nélson têm um lote para administrar
(Foto: Portal Uai/Estado de Minas)

Não é, definitivamente um todo autocrático e equalizador cartesiano. Os mineiros atiçam aqueles que vêm preparados para compreender diferenças e vivenciá-las. A premiada artista Mabe Bethônico, filósofa e doutora em artes visuais, já veterana de Bienal, por exemplo, propõe uma construção quase jornalística da arte. Em estrutura não-linear composta por fotos de campo, de arquivo e registros históricos de tempos diferentes, entre outros, Bethônico aposta numa investigação de espaço mais ampla, contextualizada no complexo do Parque do Ibirapuera e suas instituições: viveiros, Planetário, Museu de Arte Moderna, etc. “Entender como elas trabalham e como cuidam do próprio parque, resgatando inclusive a idéia antiga de essas instituições se unirem numa entidade”, propõe Mabe. É mais uma ação do tipo carinhosa e ao mesmo tempo perscrutadora da artista que criou o Museu do Sabão, uma delicada caixa de sabonetes que, digamos, ludicamente jogava com a denominação “Museu”.

Mabe Bethônico: entender como conversam as instituições
(Foto: Portal Uai/Estado de Minas)

É exatamente essa, a característica de paradoxo presente nos “mineiros da bienal”. Algo que Fernando Brant definiu como aquilo que sabe à chocolate, vida e morte; vidro e corte. Ao acordar de um sonho estranho, o visitante vai surpreender-se com uma máquina de escrever (já, por si, um paradoxo contemporâneo) com os tipos que aplicariam letras ao papel, substituídos por pontos, signos outros. “O teclado, bem como os tipos com pontuação e números, continua inalterado. Assim, sabemos o que estamos escrevendo, mas a menos que mensagens sejam “construídas” por números, vírgulas, etc., somos privados da leitura das palavras, uma vez que as mesmas são constituídas apenas por uma seqüência de pontos”, assim a artista Rivane Neuenschwander define sua provocação. Serão várias máquinas em uma estrutura de cabines para que o visitante possa vivenciar a experiência.


Além disso, também os “Relógios de Flipar” de Rivane estarão presentes não apenas no espaço da Bienal, como também nos espaços correlatos (restaurantes e hotéis que receberão os artistas e curadores). Com pontos, círculos, no lugar de números, os relógios remetem a uma homogeneidade do tempo. “Aqui, é o tempo que não conta. Um instante é igual ao outro, que é igual ao próximo, sendo sempre diferente e distinto um do outro. O flipar do mecanismo indica a marcação de um tempo abstrato”, garante Neuenschwander.

Rivane vai jogar com os signos
(Foto: Portal Terra)


Tecer as diferenças numa união histórica em um jogo revolucionário de negação e afirmação. Mais uma brincadeira, dessa vez da "escultora" de textos Valeska Soares, mineira radicada em Nova Iorque, que propõe uma espécie de tapete-capacho construído sobre o texto do primeiro catálogo da Bienal (1951). "Considerei inicialmente diferentes materiais, mas, no final, o formato tapete/capacho me pareceu mais apropriado como um espaço de transição entre a zona expositiva e o arquivo da Bienal no terceiro andar. Os visitantes têm de cruzar a superfície do tapete para entrar no arquivo", diverte-se a artista com a história. Assim estará caracterizado o grande túnel do tempo semiótico.


Valeska Soares cria tapete semiótico para viajar pela Bienal
(Foto: theartists.org)


Parece que a apelidada Bienal do Vazio, está longe desse conceito, ou, por outra, paradoxalmente próxima dele, no sentido da proposição do vazio como espaço da existência potencial. Pelo menos no conjunto do que sugere a Bienal 2008 – Em Vivo Contato –, a representatividade e a provocação estão em alta. Altíssima, se levarmos em consideração as reações que já despertou e os temas que serão abordados pelos artistas. Temas que, efetivamente, garantem um contato pra lá de vivo e vivenciado.

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23 de outubro de 2008

Tucumán, 320 *

Uma década de cultura brasileira em Buenos Aires


A Era de Ouro do Rádio tem na década de 1950 o seu ápice. Não apenas no Brasil, como em todo mundo as famílias reuniam-se ao redor dos velhos galenas para ouvir noticiário, rádio-novelas, humor e muito show de auditório. Em Buenos Aires, não era diferente. A rádio El Mundo estava para a Argentina assim como a Rádio Nacional para o Brasil. Foi através da El Mundo que os argentinos puderam conhecer a música brasileira e seus sambas, xotes, baiões e sambas-canção. Tudo graças à voz de um mineiro de Ponte Nova, bancário, funcionário público, que quase acidentalmente foi parar nas graças de Evita e Juan Domingos Perón, transformando-se em sucesso naquele país e em outros da América do Sul. Seu nome: Léo Belico.

A semana que durou uma década

Filho de amantes da música, Belico dava os primeiros passos ao lado do pai gaitista e da mãe que tocava muito bem o bandolim em Ponte Nova. Léo no violão e mais nove irmãos e irmãs alegravam os saraus da família. Bancário do Credireal e depois do Banco Mineiro da Produção (posteriormente o Bemge), teve na máquina de escrever a alavanca para uma carreira que começou como office-boy na cidade natal, chegando a contador em Belo Horizonte. Entretanto a burocracia bancária demandava uma válvula de escape para Léo Belico. Em BH ele encontrou-se com dois conterrâneos, os irmãos Bolívar e Vladimir com os quais formou o Trio Aymoré que apresentava-se no Cassino da Pampulha, nas horas dançantes dos elegantes Iate Clube e Minas Tênis e nos bailes da capital. Sucesso na cidade, a orquestra do maestro Deley precisou de um crooner e acabou chamando Léo para integrar a equipe. Era o finalzinho da década de 1940 e Belico entrou para o rádio. A Guarani tinha então um dos melhores casts da cidade: Jáder de Oliveira, Delfino Santa Rosa, Rômulo Paes e Orlando Pacheco.

Léo Belico nos auditórios da rádio El Mundo - Buenos Aires

(Foto: arquivo pessoal LB)

“Que emocion que mencionas a Leo Belico. Cuando yo tenia alrededor de 8 años mi mama me llevo a verlo a Radio El Mundo porque yo estaba enamorada de el y me firmo un autografo que todavia lo conservo hasta hoy. Gracias por el recuerdo”, comenta uma quase anônima Marta em um blog argentino. E foi por um capricho do destino que Léo Belico chegou em Buenos Aires. Um prêmio em uma das festas de final de ano do Banco Mineiro da Produção presenteou o competente contador com uma passagem para a capital portenha. “Eu tinha um dinheirinho guardado que ganhei com a música em Belo Horizonte. Isso permitiria que eu passasse uma semana por lá”, relembra Belico. Uma semana ? Que nada. Na primeira oportunidade que teve, Léo deu uma “canja” numa casa noturna. Suficiente para ser “descoberto” por um produtor musical da El Mundo que lançou a “bomba” no mercado argentino. Patrocinado pela única filial da elegante loja Harrods fora de Londres, Léo Belico conheceu a fama e a idolatria do rádio nos anos dourados. Também passou por outras duas grandes rádios da época, a Rádio Belgrano e a Splendid. Fez sucesso no cinema, participando de um número musical no filme “Romeo e Julita”.

No llores por mi, Argentina

Léo Belico teve a admiração de Eva Perón e participou de inúmeros shows no território argentino para a fundação social que a toda-poderosa Evita comandava. Uma vez, convidado para noite de gala na Casa Rosada, sede do governo argentino, aproximou-se de um grupo de brasileiros que conversava com o presidente Perón. O líder do grupo fazia um comentário orgulhoso sobre o “nosso” artista brasileiro que faz sucesso, ao que Perón respondeu: “Bueno, es verdad que hace éxito, pero el Negro Belico es de nosostros”. O sucesso de “La voz de Brasil em Buenos Aires” – só cantava em português – levou Léo Belico por toda América do Sul, inclusive Colômbia onde chegou a ter que pedir escolta policial para locomover-se.

Canta Brasil en la voz de Léo Belico: sucesso em português

(Foto: arquivo pessoal LB)

Com saudades do Brasil, Léo Belico regressou em agosto de 1960, aos 35 anos de idade. A partir daí faria apenas temporadas na Argentina. Irrequieto, ainda participou de programas na rádio Record de São Paulo e na mítica Nacional do Rio de Janeiro na qual apresentava-se sempre no programa do lendário César de Alencar, convivendo com os astros e estrelas da época: Marlene, Emilinha, Ângela Maria, Lúcio Alves, Jorge Veiga, Jorge Goulart, maestro Chiquinho e os irmãos Cyl e Dick Farney, entre outros tantos.

Léo em seu apartamento em BH: "É o tempo que esquece da gente"

(Foto: AC)

Ao lembrar a época, Léo Belico tenta disfarçar um pequena lágrima que corre do olho esquerdo. “É o tempo que esquece da gente, substituídos por isso que a TV mostra e o rádio toca hoje em dia. Músicas grosseiras, com palavras chulas. É o sucesso de hoje...”, lamenta Belico, talvez com saudades de uma época na qual apenas apresentava-se o artista bem trajado e que tivesse, realmente, qualidade. A mesma qualidade que levou o endereço do brasileiro – Tucumán, 320 – a tornar-se uma espécie de embaixada da cultura musical brasileira na capital argentina.



Clique abaixo e ouça Léo Belico interpretando a música
Me deixa em paz, de Monsueto e Ayrton Amorim.

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(* Matéria originalmente produzida para o Jornal Edição do Brasil)


8 de outubro de 2008

Troca-se preconceito por medalha*

A realidade pra lá de olímpica nas ruas de Belo Horizonte


Brasil campeão: Daniel Dias,
um grande vencedor em Pequim 2008
(Foto: Ag. Efe)

Há três semanas a China apagou a tocha dos Jogos Paraolímpicos de Pequim, registrando 47 medalhas e a nona posição para a delegação brasileira, no mais expressivo resultado brasileiro desde a primeira participação, em 1972, na cidade alemã de Heidelberg. Para nossos atletas, a palavra de ordem foi superação. Superaram a falta de patrocínio, dificuldades com as confederações brasileiras, mudanças de última hora nos critérios que identificam as categorias pelo grau de deficiência e, acima de tudo, superaram o preconceito. Esse mesmo preconceito que transita veladamente pelas ruas e mentes. Se para um atleta paraolímpico o preconceito ainda é uma realidade, o que falar do cidadão comum numa cidade como Belo Horizonte ?


Paraolimpíada urbana

Diariamente, pessoas com variados graus de deficiência praticam o Cross Country, desviando-se de obstáculos físicos e conceituais, driblam a ausência de bom-senso e lutam contra a ignorância. Segundo agentes sociais e especialistas, ainda falta muito para que a cidade atenda os paraatletas do cotidiano.

Eliseu diz que adaptação da cidade ainda é insuficiente
(Foto: AC)

Para Eliseu Ferreira da Silva, coordenador de esportes da Associação Mineira de Paraplégicos (AMP), a situação melhorou, embora ressalve que “apenas o hipercentro está adaptado, mas a cidade deve ser preparada como um todo”. Ferreira também pondera que a divulgação dos Jogos Paraolímpicos ajuda a diminuir o preconceito, embora os resultados ainda fiquem muito distantes do ideal. Ele diz que “na década de 1980, um cadeirante no supermercado era objeto de espanto. As crianças, curiosas, aproximavam-se da gente e puxavam assunto, enquanto as mães procuravam afasta-las, deixando a impressão de existir um certo medo, como se houvesse algum perigo de contágio. Hoje, não. Já sentimos que as pessoas evoluíram um pouco mais”.


Sementeiras de ações

Na quadra de futebol, André, Rafael e Carlos Eduardo, portadores de deficiência mental, comemoram cada jogada bonita, cada gol. Mesmo que seja do adversário, no melhor estilo do barão de Cobertin, criador da olimpíada moderna e da afirmativa “o importante é competir”. André, o artilheiro que trabalha numa empresa de Betim, afirma que “o futebol no final de semana é show, vibração e emoção. É tudo isso”.

Rafael, André e Carlos Eduardo: evoluindo com o esporte
(Foto: AC)

Os três amigos praticam o esporte na Crescer – Escola de Futebol Especial, criada há dois meses numa quadra alugada pelo psicólogo Evandro Gouvêa e os amigos: o professor de Educação Física Luiz Fernando Gomes e o orientador esportivo João Antônio. “O que a gente faz é promover a inclusão deles. Trabalhamos limites, comportamento social e uma série de fatores paralelos ao estritamente físico. É uma batalha diária contra o preconceito”, reflete Evandro.


Soldado da mesma luta, a professora Regina Félix Silva, diretora de uma escola pública no bairro Taquaril, liderou uma verdadeira revolução no espaço físico da instituição. “A escola não é minha, dos professores ou do poder executivo. Ela é de todos e deve estar preparada para todos, sem restrições físicas ou preconceitos que atrapalhem o bom desenvolvimento dos alunos e alunas”, declara a diretora que substituiu escadas e arquibancadas por rampas de acesso, reformou banheiros dotando-os de boxes especiais para deficientes, providenciou um elevador para cadeirantes, eliminou ressaltos no chão e aumentou a largura das portas para facilitar o acesso aos novos espaços: um centro de informática e um auditório multi-uso.

Regina constrói na escola as medalhas de Londres 2012:
"garantir o futuro a partir do presente"
(Foto: AC)

“Quem exerce função pública deve preocupar-se em atender a população da melhor forma possível. Não é concessão: é a obrigação profissional, moral e social em garantir o futuro a partir do presente”, ressalta Regina, sem perceber que seu pensamento reflete o desejo de afirmar a cidadania, eliminando qualquer entrave que possa significar exclusão, garantindo hoje, já, as medalhas que virão nos Jogos Paraolímpicos de Londres, em 2012.


Serviço

Associação Mineira de Paraplégicos - AMP
Avenida do Contorno, 2655 – Santa Efigênia
Telefone: 3241-5294
E-mail: amp_minas@ig.com.br

Crescer – Escola de Futebol Especial
Rua São Manoel, 197 – Floresta
Telefone: 3347-0791 e 9347-1857
E-mail: crescer.especial@gmail.com


Escola Municipal Professora Alcida Torres
Rua Álvaro Fernandes, 144 - Taquaril
Telefone: 3277-5623

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(* Matéria originalmente produzida para o Jornal Edição do Brasil)


25 de agosto de 2008

Pioneirismo e muita carpintaria *
O 'ensaio corrido' do Net


Desbravadores, empreendedores e aventureiros de todos os tipos vêm de longe. Trazem material de construção e variadas mercadorias para mascatear na mais nova capital da jovem república: Bello Horizonte.

O casarão de 1904: empório, mascates e comunicação
(Foto: divulgação Net)

Antes da longa aventura do regresso, uma parada no empório que funciona no andar térreo do amplo casarão, na esquina da rua da Bahia com rua dos Timbiras, para guarnecer os alforjes com os víveres imprescindíveis ao retorno. Ali os homens proseiam, transmitem idéias e histórias.


Túnel do tempo

Tombado pelo Patrimônio Histórico Municipal desde 2000, o imóvel segue a vocação e continua sendo um pólo disseminador da comunicação. Será que, olhando a antiga fotografia, as irmãs Daniela, 10, e Maria Francelina Alves, 9, pensam nisto agora ? Exatamente agora, no momento em que fazem a inscrição para o curso de teatro infantil ? “A Maria é tímida, não queria. Eu e mamãe insistimos com ela, depois que vimos a propaganda do Net na Tv”, conta Daniela, em meio a um sorriso interminável.

No casarão, os sorrisos de Maria Francelina e Daniela Alves comunicam

(Foto: AC)

O cheiro é de teatro, alunos e alunas transpiram teatro e parece que à qualquer momento soará a terceira campainha anunciando a abertura da cortina e o início da função. As grandes salas têm hoje palcos e espaço suficiente para abrigar vários praticáveis (sólidos geométricos multi-funcionais) que serão, na imaginação e no exercício diário da arte teatral, tudo o que as meninas imaginarem ser. Daniela e Maria são duas, entre os mais de 600 alunos e alunas do Net – Núcleo de Estudos Teatrais, fundado em 1980 pelo ator, diretor e professor José Márcio Corrêa.

Mais de 600 alunos matriculados
(Foto: divulgação Net)


Ásperos tempos e a luz no fim do túnel


Aos 48 anos, José Márcio conversa sobre o Net com um carinho especial. “Temos quatro cursos: iniciação teatral, curso extensivo, teatro infantil e curso de férias. Variadas faixas etárias misturam-se, interagem, trocam experiências. Desde os pequenos de seis anos até a turma da terceira idade. Quase todos os professores e professoras formaram-se aqui”, orgulha-se Corrêa.

E, realmente, há motivo para orgulho. Márcio foi tomado pelo teatro ao ser convidado para participar de uma montagem de Morte e Vida Severina, um auto clássico de João Cabral de Melo Neto. Desde então o teatro e a formação teatral tornaram-se o moto da vida do ator. É com emoção que ele explica a razão de ser da escola: “Um lugar onde a gente possa ensinar teatro, fazer teatro, difundir o teatro em todas as suas manifestações”.

José Márcio Corrêa: "Ensinar teatro, fazer teatro, difundir teatro"
(Foto: AC)

José Márcio realizou o sonho pelo qual luta desde 1980, em espaços emprestados, alugados, até conseguir o casarão histórico de 1904. Atualmente o Net também conta com um teatro para 150 pessoas. “A gente deu duro numa época em que até para encenar um texto era necessária a aprovação da censura. Os artistas eram discriminados, ter uma escola de teatro, então...”, diverte-se o diretor ao relembrar a época árdua. A escola superou as dificuldades e atravessou o tempo. São 28 anos de Net. Só a peça Quem rir por último é retardado, em cartaz há 12 anos, atraiu cerca de um milhão de espectadores pelas mais de 100 cidades por onde passou. É o grupo A turma do quem ri, formado dentro do Net, assim como artistas e celebridades de expressão nacional: Gorete Milagres, Jackson Antunes, Natália Guimarães, Alberto “Big Brother 7” Cawboy, Totonho (da dupla de atores e humoristas Cajú e Totonho), os irmãos César Menotti e Fabiano e Daniel de Oliveira, entre tantos outros talentos, incluindo-se aí profissionais de variadas áreas que percebem no teatro um diferencial para a atuação diária, como jornalistas e apresentadores, por exemplo. “O teatro é mais que palco, luz e visibilidade. Muito mais que fama. É troca, desenvolvimento da criatividade, comunicação, expressão, socialização e cultura. Todas as pessoas deveriam fazer teatro como forma de aprimorar a convivência. A vida seria bem melhor. O que é vivido no teatro, leva-se por toda a vida”, garante José Márcio Corrêa.

Teatro além da fachada, para as irmãs Alves
(Foto: AC)

As meninas ? Continuam encantadas. Sonham com Pluft, Maroquinhas, cebolinhas raptadas, bruxinhas boas e cavalinhos azuis. Cada vez maiores, os sorrisos já iluminam e contagiam a secretaria da escola. As fichas de inscrição estão prontas e as irmãs Alves só querem começar, sem perceber que já o fizeram. A partir de agora há muito o que andar. Sim, há Maria Clara, mas há também Gil Vicente, Martins Pena, Vianinha, Moliére, Ibsen, Stanislavski, Guarnieri, Boal, Pirandello, Zé Celso... Muito prazer, serão apresentadas à Cacilda, Bibi, Dulcina, Ziembinski, Mme. Morineau, Rossi, Procópio e Sérgio Brito. O mundo, meninas, abriu as portas; digam baixinho (e em francês, para não assustar a ninguém que não seja do meio): merde !, e fiquem à vontade.


Serviço

O Net – Núcleo de Estudos Teatrais – funciona no bairro de Lourdes: rua dos Timbiras, 1605, esquina com rua da Bahia.

Telefone: 3222-1010

Site: www.teatrodonet.com.br

Os cursos custam, em média, R$ 59,00


(* Matéria originalmente feita para o Jornal Edição do Brasil)